29.12.11

placa verde.

Todos iam àquela cidade. Quem sabe pudesse ser uma cidade autoritária, que impedisse a saída de qualquer um chegasse, porque quando chegavam lá, nunca mais voltavam. Ou poderia ser uma boa cidade, de onde ninguém quisesse sair.

Não se sabia muito dela. Nem sua localização era definida, o que dizer do que acontece lá dentro, onde não existiam telefones, internet, e o celular sempre fora de área. As pessoas eram incomunicáveis. Por isso tantas teorias do universo dentro dessa cidade.

O único fato é que todos, todos seguiam em direção a ela. Grandes avenidas, ruelas, carros passavam por caminhos até chegar lá.

Todos na estrada.

Aquele ali tinha medo de ir para lá. E se ele não gostasse do ar, se não fosse devidamente arborizado? Obviamente teria de se fixar, mas ele, como a imensa maioria, amava a estrada.

Ouviu boatos de pessoas que, quando menos esperavam, se deparavam com uma placa verde sinalizando a chegada.

Por isso, ele às vezes era neurótico. Quando estava há muito em linha reta, fazia uma curva louca e seguia em outra via, para garantir sua segurança.

Outro dia parou para uma tapioca à beira da estrada e conheceu uma loira linda. Estava sentado assoprando o café quando ela entrou com suas coxas torneadas e capacete na mão. Ela foi até sua mesa e se sentou ali. Sentiu que ia se dar bem, até ela sussurrar na sua orelha, tem espaço na minha garupa, e ele, neurótico, recusar, pensando que ela sabia exatamente onde a cidade ficava e fosse levá-lo junto. Ficou tão nervoso que esqueceu de sugerir, hm, você poderia, antes de seguir com a viagem, ficar no meu carro um tempinho.

Ele era extremamente individualista, não gostava de dirigir com alguém ao seu lado, dando pitacos.

A estrada era só dele, e ele era só da estrada.

Sentiu fome e parou para comer algo naquele restaurante que, como todos os outros, era de beira de estrada. Estava apinhado de gente, e não teve outra alternativa além de se sentar na mesa de um homem de chapéu de abas largas.

Individualista, porém minimamente civilizado, cumprimentou aquele à sua frente. E a conversa fluiu, histórias transbordando e ideias flutuando.

- Você é um cara esperto, - ele disse, de voz transparente. - mas pare de pensar tanto n'A Chegada. Isso tudo não é sobre chegar, é sobre a jornada até lá.

E absorveu as palavras como a esponja que ele era.

Ao terminarem de comer, despediram-se, e cada um no seu carro. E saíram, cada um no seu caminho. Porque aquele caminho se percorria maior parte sozinho.

Notou a estrada se tornando mais estreita. Achou estranho. Não conseguia visualizar o próximo desvio, e o sangue quente correu mais rápido nas veias, coração em parafuso, em pânico.

E viu.

Lá longe, teve um vislumbre da placa verde. Não podia dar ré, porque carro nenhum tinha ré. O que passava, só podia se contemplar no retrovisor.

As letras brancas no verde cresciam no fermento do acelerador. Tornaram-se legíveis: bem vindo.

E ele relaxou. Uma paz acabando sua ânsia, porque se sentiu bem vindo.

Todos os caminhos têm o mesmo destino.

24.11.11

janela.

Espírito amigável, timidez não era um de seus aspectos. Seu nome, ao dançar na boca de alguém, tinha timbre de palavra alegre. Seus olhos azuis eram marcantes para aqueles que a conheciam.

Ela não entendia, porém, porque as pessoas não viam serem seus olhos obviamente castanhos. Fitava-se no espelho, incrédula sempre ao constatar que seus olhos não eram azuis, algo que as pessoas tinham como certo. Considerou a possibilidade de ser daltônica. Fora também ao oculista. "Nada de errado com seus olhinhos azuis, menina".

Apesar de se divertir na maior parte do tempo, não se sentia confortável em alguns momentos de não-euforia. Às vezes parecia estar assistindo a uma cena como espectadora, até alguém lhe fisgar, e ela voltar ao lugar onde seu corpo estava. Rodeada de pessoas, se sentindo só.

Sentia ser a garota dos olhos azuis, mas não podia negar a garota dos olhos castanhos: invisível, mas existente. A garota dos olhos azuis dentro dela sentia-se saciada, mas era egoísta. A garota dos olhos castanhos tinha fome.

Bipe de celular, uma mensagem. "Estou aqui te esperando". A sua carona. Achou o carro da Brenda e foi-se ao encontro de seus amigos.

E ela ria. E esquecia dos olhos castanhos que tinha e que, para os outros, não existiam. O tempo passando e começaram alguns a irem embora. Mas ela continuava lá, e ela ria.

- Aonde está a Brenda?
- Está se agarrando com o Lucas. - foi o que respondeu um dos seus amigos. Ela estava a sós com ele no cômodo, agora. Brenda tinha o costume de ser uma das últimas a ir embora, por conseguinte, ela também.

Conversas entre duas pessoas são poderosas. Ativam assuntos adormecidos e desinibem a alma, quando estamos entorpecidos e há conexão.

Depois de longo tempo de conversação, o silêncio imperou. Somado ao contato visual intenso, olho no olho, dá sensação de nudez.

Você tem lindos olhos castanhos, ele disse, palavras pairantes no ar. A visão é altruísta, dá lugar ao tato e ao paladar.

E o contato passou do visual.

1.11.11

sombras.

Aquela cidade era bem normal. O máximo que lá acontecia era uma chuva mais grossa que encharcava ossos.

Mas um dia o sol nasceu negro. Uma grande bola negra no céu.

Primeiro, houve o pânico. Como é que o sol estava daquele jeito? Será uma força desconhecida? E aquele sol começou a sugar a luz da cidade. E a sugar a luz do mundo. Quiçá da galáxia. Quando algo não é mais novidade, param de se importar. E daí que não há luz? E continuaram seus caminhos.

Não se viam mais pessoas. Se viam espectros.

E ver o rosto de alguém passou a ser um contato muito íntimo para qualquer um. No escuro, não se conhece ninguém. O outro é um desconhecido. O único confiável é você mesmo. O aceito mundialmente, o acordo, era de se manter isolado e não mostrar seu rosto.

Um menino ouvia histórias do seu avô, que mais pareciam fábulas, de um tempo em que todos viam os rostos um dos outros. Os mais corajosos podiam até perguntar qual o seu nome. E o menino ouvia deslumbrado, porque crianças gostam de contos de fada.

Ele cresceu, e crescia com um isqueiro no bolso. Ele era adaptado à escuridão, mas sonhava com a luz.

No trabalho ele tinha de cuidar de alguns papéis. Muitas pessoas-espectros passavam por lá e pediam informações. Noite pós noite, porque lá não existiam dias, ele trabalhava de bom grado.

Até o dia em que uma voz fez seu sangue gelar.

A expressão "o sangue gelar" é subestimada, porque nos faz pensar em medo, proporcionado por uma descarga de adrenalina. Mas adrenalina com pitada de feromônios não é medo puro, é medo alegre.

Sangue gelado e estômago virado.

A voz delicada de moça fez o rapaz fazer algo que a maioria preferia evitar: imaginar o rosto dela.

Queria saber se seu rosto parecia com sua voz, um veludo que chegava a ele em ondas. Muitos não gostavam nem de descobrir suas próprias feições, tinham medo de descobrir algo monstruoso em si, o que o rapaz não ligava. A monstruosidade é humana. Ele próprio acha seu nariz meio grande demais, mas ali ainda era ele. Se a moça tivesse um nariz grande, ele não se importaria. Se tivesse lábios muito finos, ele não se importaria. Ele tinha a ânsia de conhecê-la. Saber quem ela é.

Seus dedos roçaram no isqueiro no seu bolso. Acariciava o isqueiro como se esse fosse sua tentação.

- Me ouviu, senhor?

A voz pairava e ele sentia o gosto da voz. Queria ver a voz. Queria lamber sua voz. Mas ainda era muito pouco.

Tirou o isqueiro do bolso como o criminoso tira um canivete antes de uma atrocidade. Ergueu o objeto no escuro familiar.

Queria ver seu rosto.

- Com licença, senhorita.

E com um movimento tão simples quanto um canivete em uma garganta despreparada, ele acendeu o isqueiro e o fogo iluminou o balcão.

Vislumbrou seus olhos vivos em desespero. Seu baixo ventre se enrijeceu de emoção e entusiasmo.

E a garota fugiu, sem deixá-lo conhecer seu rosto.

Porque rostos não se mostram.

15.4.11

azul.

Estava lá no fundo, via tudo azul.
Um círculo de luz na superfície. O Sol parecia diferente aqui embaixo.
Então lembrei. Não respiro aqui.
Estava tão fundo... a luz vinha de longe. Como eu iria alcançá-la? Me resfolegava, batia as pernas, mexia os braços.
- Está tudo bem?
Daí acordei.
Nick me salvou de um afogamento surrealista. Nós tínhamos alguma diversão juntos há algum tempo, nos conhecemos em uma situação embaraçosa, e tivemos um conhecimento relativamente profundo um do outro para um espaço de tempo de poucas horas.
Ele me falava da sua vida e eu falava do que queria fazer com a minha.
- Vou ver se pego algo para comer na Paula. A gente se vê depois. Cuidado.
E ele saiu.
Me encolhi no banco de trás do carro, onde eu tinha dormido – e me afogado.
As gotas d’água no vidro da janela pareciam me chamar, mas eu estava sem forças para mover até mesmo meus dedos. Quando o celular, no meu bolso de trás da calça, começou a vibrar, tive de tirar energias para me mover de alguma parte de mim que pensei que nem existisse.
- Alô?
- Corre, - ouvi a voz de Nick – foge daí agora. Tenho de desligar. Tchau.
Assim que as palavras fizeram sentido na minha cabeça, pulei para o banco do motorista e dei a partida no carro.
A estrada já era familiar para mim e para Nick. Talvez ela, só ela e a Paula, conhecessem nosso segredo.
Quando estamos fugindo, não pensamos em nada. A única coisa em mente é, puts, corre, rápido, se esconde.
Nem sempre é fácil de lembrar algum esconderijo, ainda mais com fome.
Eu só corria com o carro, tendo de companhia só a estrada.
Um posto de gasolina, lá na frente, era o lugar em que eu sempre estacionava. Ao lado do posto havia um muro amarelo, que circundava o prédio da Paula.
E o posto se aproximava. E eu reduzia a velocidade.
Parei o carro, saí dele. Dei um alô ao frentista que estava sempre por lá. Ao invés de só tirar o boné e cumprimentar de volta, ele disse que eu fosse discreta.
O que era óbvio.
Saquei o telefone do bolso enquanto dava alguns passos em direção ao muro amarelo.
- Ei, estou em frente a sua casa. Você saiu?
- Não. Vou dizer para o porteiro deixar você subir.
Um clique fez a porta de alumínio abrir.
Começava a chover. É engraçado notar que todo mundo anda mais rápido quando começa a chover, no fim das contas estaríamos molhados de um jeito ou de outro.
Aquele lance de escadas também já era um velho conhecido meu. Toc, toc, toc, se ouvia meus tênis molhados batendo nos degraus. Eu sabia muito bem aonde estava indo, e mesmo que houvesse a perseguição, aquela sombra, um vulto invisível que eu só supunha a presença, era reconfortante estar ali, subindo.
Apartamento 301.
Toquei a campainha, e depois de poucos minutos ela apareceu, loira e mau humorada. “Entra”, ela disse.
- E aí, Paula. O Nick está por aqui?
- O meu Nick ou o seu Nick?
O namorado da Paula se chamava Nick.
- O meu Nick. – eu tirava os tênis e as meias, e deixava ali encostada perto da porta.
- Ah, ele estava aqui, mas deu uma saída. Ei, você tem um cigarro?
- Você sabe que eu não fumo. Vai para o posto e compra cigarro, cara. Preguiçosa.
- Sai dessa, você que veio mendigar por aqui.
Paula mexia suas pernas gordas em direção ao sofá. Vasculhou as almofadas, achou uma carteira de cigarros, e deu um resmungo quando viu que estava vazia.
- Vou dizer para o vizinho de baixo que vou fazer barulho no quarto. – disse, indo até a cozinha, com intenção de ir ao interfone. – O filho da puta disse para eu parar de gritar e de ranger a cama, porque atrapalhava o sono dele. Vou mandar ele se ferrar, aposto que é um mal comido.
Fiquei sozinha na sala.
A sala dela era bem simples. Tinha um sofá azul e uma mesinha, com algumas revistas e um cinzeiro sobre ela. Uma televisão, telefone, um armário que estava sempre vazio, onde cabia alguém dentro. Paula dizia que ia colocar uns livros lá dentro qualquer dia.
Ouvia ela brigando na cozinha. Não entendia muito bem, mas saquei um “vá se foder” no meio de uma frase.
Cheguei para perto do armário e bloqueei a sua portinha com meu corpo, ao me sentar em frente dele. A Paula estava vindo, trazendo um copo d’água na mão.
- Cara ridículo. O que você está fazendo aí?
- Nada! – fingi nervosismo.
- O que é que você está fazendo? Tem alguém aí dentro?
- Como...? Porra, Paula, nunca fiz nada além de uma chupada, eu te juro.
- Puta que o pariu! Como é que você faz isso comigo, sua filha da puta? Depois de tudo que eu fiz por ti!
Me levantei rindo e disse que estava só brincando. Ela fez uma expressão de indignada de forma bem teatral e jogou um copo d’água na minha cara.
Daí acordei.
Estava lá no fundo, via tudo azul.
Um círculo de luz na superfície. Eu não respirava e não importava como eu me mexesse para nadar naquela água gelada, porque eu não saía do lugar.
E Nick não podia me salvar, eu já estava acordada.