1.11.11

sombras.

Aquela cidade era bem normal. O máximo que lá acontecia era uma chuva mais grossa que encharcava ossos.

Mas um dia o sol nasceu negro. Uma grande bola negra no céu.

Primeiro, houve o pânico. Como é que o sol estava daquele jeito? Será uma força desconhecida? E aquele sol começou a sugar a luz da cidade. E a sugar a luz do mundo. Quiçá da galáxia. Quando algo não é mais novidade, param de se importar. E daí que não há luz? E continuaram seus caminhos.

Não se viam mais pessoas. Se viam espectros.

E ver o rosto de alguém passou a ser um contato muito íntimo para qualquer um. No escuro, não se conhece ninguém. O outro é um desconhecido. O único confiável é você mesmo. O aceito mundialmente, o acordo, era de se manter isolado e não mostrar seu rosto.

Um menino ouvia histórias do seu avô, que mais pareciam fábulas, de um tempo em que todos viam os rostos um dos outros. Os mais corajosos podiam até perguntar qual o seu nome. E o menino ouvia deslumbrado, porque crianças gostam de contos de fada.

Ele cresceu, e crescia com um isqueiro no bolso. Ele era adaptado à escuridão, mas sonhava com a luz.

No trabalho ele tinha de cuidar de alguns papéis. Muitas pessoas-espectros passavam por lá e pediam informações. Noite pós noite, porque lá não existiam dias, ele trabalhava de bom grado.

Até o dia em que uma voz fez seu sangue gelar.

A expressão "o sangue gelar" é subestimada, porque nos faz pensar em medo, proporcionado por uma descarga de adrenalina. Mas adrenalina com pitada de feromônios não é medo puro, é medo alegre.

Sangue gelado e estômago virado.

A voz delicada de moça fez o rapaz fazer algo que a maioria preferia evitar: imaginar o rosto dela.

Queria saber se seu rosto parecia com sua voz, um veludo que chegava a ele em ondas. Muitos não gostavam nem de descobrir suas próprias feições, tinham medo de descobrir algo monstruoso em si, o que o rapaz não ligava. A monstruosidade é humana. Ele próprio acha seu nariz meio grande demais, mas ali ainda era ele. Se a moça tivesse um nariz grande, ele não se importaria. Se tivesse lábios muito finos, ele não se importaria. Ele tinha a ânsia de conhecê-la. Saber quem ela é.

Seus dedos roçaram no isqueiro no seu bolso. Acariciava o isqueiro como se esse fosse sua tentação.

- Me ouviu, senhor?

A voz pairava e ele sentia o gosto da voz. Queria ver a voz. Queria lamber sua voz. Mas ainda era muito pouco.

Tirou o isqueiro do bolso como o criminoso tira um canivete antes de uma atrocidade. Ergueu o objeto no escuro familiar.

Queria ver seu rosto.

- Com licença, senhorita.

E com um movimento tão simples quanto um canivete em uma garganta despreparada, ele acendeu o isqueiro e o fogo iluminou o balcão.

Vislumbrou seus olhos vivos em desespero. Seu baixo ventre se enrijeceu de emoção e entusiasmo.

E a garota fugiu, sem deixá-lo conhecer seu rosto.

Porque rostos não se mostram.

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