29.12.12

seis horas.

Caminhava sem saber no que pensava.

Ela precisava chegar às seis horas e para isso precisou pegar um ônibus. Depois de se sentar, próxima à janela, parecia pensar sem notar, cabeça vazia sem realmente estar. Os pensamentos se guiavam por si, enquanto olhava o movimento da rua.

O vidro da janela era embaçado, via o mundo feito astigmático.

Agora, na rua, sentindo o peso da bolsa em seus ombros, via o contorno das formas e pensava se todos viam como ela.

Sereias precisam ser míopes para ver bem debaixo d'água.

Andava e não sabia mais o por que. Era como se não tivesse objetivos reais, caminhando pelo ato de caminhar, de seguir, sem refletir no que está além disso.

Só precisava chegar às seis.

Ela era máquina, inspirando e expirando, atravessando a rua e olhando a calçada quebrada.

O céu muda de cor de quanto em quanto tempo?

Na sua determinação desfocada, via um homem suado de academia vindo na sua direção, e ele tinha suas ideias, e ele tinha sua própria personalidade, e ele tinha sua história, indo para um lugar que não interessava aos passos da garota. O homem, ao vê-la, parou e pôs-se de lado para ela passar.

Tomou um susto enorme porque lembrou que não era invisível.

Por o pensamento voar tanto, ela pensou que não existia ali.

Será que a viam na rua e pensavam nas histórias que ela carregava, assim como ela fazia com os passantes? Às vezes falava sozinha ao caminhar, será que notavam?

Quando falava sozinha, inventava histórias para si, situações. Carregava sua história e suas histórias.

Parou para pensar na sua falta de pensar. Ao pensar na falta de pensar pensou que se pensa o tempo todo. Seu coração iria bater e sua mente iria pensar sempre.

Na verdade, iria parar algum dia, mas então não importaria mais. Ela não existiria. Não teria consciência para notar que não pensava.

Só faltavam poucos quarteirões.

Uma dor atravessava suas costelas, uma dor aguda. Continuou andando no mesmo ritmo, percebendo as pontadas, porque caminhar mais devagar não iria aliviá-las.

E precisava chegar às seis.

Debaixo de uma árvore, parou para atravessar a rua. Quando lançava um passo para asfalto, uma folha caiu sobre seu ombro. Assustou-se.

Olhou para a rua e viu os olhos de faróis iluminando seu rosto. Notou como o ônibus corria.

Enfim parou de pensar.

-
coloquei a tag "conto" nesse texto, mas não sei bem se isso é um conto. deve ser.

24.8.12

inversão.

Depois da sua aula de esgrima, a garota se sentia cansada, mas estimulada. Sabia dominar o florete muito bem, quase uma extensão do seu braço. Também possuía algum destaque no boxe e em artes marciais, como as demais mocinhas da sua idade.

Estudava em uma escola de internato tradicional, só para garotas. Tinha aulas comuns como português e matemática, mas o diferencial das formandas de lá estava na ampla quantidade de lutas que elas aprendiam, nas quais nossa heroína era invejada. Dentre os outros cursos adicionais, estavam o preparatório para o ingresso no mundo financeiro das bolsas de valores e também aulas de funcionamento geral de automóveis.

Ela se dirigia ao seu quarto automaticamente. Quando as pernas se guiam de forma autônoma, a cabeça tem mais conforto para vaguear além dos corredores e dos pátios do colégio.

- Oi, - cumprimentou ao entrar no quarto. Sua amiga, Juliana, lia tuites, deitada. - desisti da greco-romana hoje. Posso agora te ajudar em química, se quiser.

Juliana disse que não queria pensar em química agora. Amanhã começavam as férias, afinal de contas. Tinha de focar em garotos, isso sim. Por que garotos na mente com tanta frequência?

Talvez fosse o excesso de garotas no dia a dia.

Dormiu em uma noite condensada e sem sonhos. Seus pais a buscariam pela manhã, sem sentimentalismos nem reencontros doces. Isso era coisa para meninos e seus romances baratos.

O nariz colado no vidro da janela do carro e os olhos bem abertos, sem ver, com o foco na mente sempre aérea. Como adorava poder ser independente, ser do sexo que usava saias. Ter sua própria vida, não ser dependente do casamento, poder ser solteirona, se quisesse.

Mas por que, no íntimo, tinha essa fantasia de ser salva? Salva por um homem...! Parte do tempo, ao caminhar na rua, se imaginava na situação de ser atacada e assim meter a porrada no agressor. Pensar em quebrar ossos acalentava o instinto da violência humana. Estar em uma briga.

Mesmo assim, na outra parte do tempo, pensava em uma caminhada sinistra e um agressor hediondo, sendo ela salva por um homem de ombros largos e aspecto viril. Não entendia o deleite que experimentava nessa cena imaginária. Ela era uma conservadora, e as ideias de machismo pareciam de outra realidade, de uma realidade que não era sua.

Mas os ombros!

O devaneio teve uma pausa para uma conversa com a mãe, de forma breve. Ela dirigia com calma. Falava de cavalos.

A mente da garota logo galopou de novo, em um trote inevitável. Só voltou a prestar atenção quando o pai mencionou um possível casamento com um moço de bom dote.

- Ele está preso em uma torre, pobre alma.

O espírito aventureiro da garota relinchou de felicidade.

Perguntou por fossos e dragões. O pai disse que não havia muita informação a ser dada, além do básico. Ele tinha a mãe do moço nos contatos do celular, caso a filha tivesse real interesse.

Nossa heroína se interessou sim pela torre. Gostava de adrenalina. Era boa em torneios. Possuía sagacidade. Ela sabia disso e se fingia de modesta, um dos truques do carisma.

Ficou decidido que salvaria o moço na semana seguinte.

Flutuava na expectativa. Facilidade de perder-se em conversas.

No dia do resgate, atravessou o campo, obstáculos que divertiram. Subia a parte final da torre, com a ideia de vitória.

Chegou ao topo.

Batidas leves na porta semicerrada, que abriu. O rapaz estava ali, de pé, olhando para ela. A garota se sentiu estúpida por sentir um nó no estômago. A consciência da própria estupidez, legítima, veio com a vontade de sorrir só por ver aquele moço, com contrações involuntárias do rosto. Se forçava a não sorrir tão abertamente.

- Vamos?

A decisão foi unânime. Travessão sem dono exato.

Ela não tinha percebido que o dragão que enfrentara, agora derrotado, tinha aquecido e queimado parte da estrutura do castelo. Não tinha percebido uma viga que estava caindo.

Só percebeu o estrondo pesado quando estava ao chão, depois de o rapaz ter a puxado para si e pulado para longe a tempo.

O toque era em todo o corpo. Estava envolvida por completo por ele. Cruzaram os olhares e ele sussurrou, "está tudo bem?". Pelos da nuca se arrepiaram. Tinha sido salva.

Depois de casados, eles dividiam a louça a lavar depois do jantar.

-
muito provavelmente um dos mais clichês que já fiz. recentemente, ao menos.

19.7.12

três quarteirões.

Ela voltava do colégio de ônibus. Não se importava, na verdade. A garota até gostava disso, de analisar as pessoas do ônibus em silêncio, imaginando como era estranho pensar que cada um ali tem sua própria vida, seus próprios sonhos e pensamentos.

Tinha também um jogo, quando o ônibus estava mais vazio. Se imaginava na escolha, uma escolha sem chance de não ser feita, a de quais caras de lá ela poderia ter sexo no caso de uma catástrofe mundial em que os sobreviventes seriam as pessoas daquele exato ônibus.

Descia na sua parada sozinha. Sempre dizia um obrigada ao motorista.

Na sua parada, Vítor a esperava. E ele caminhava os três quarteirões dali a casa dela, dava um adeus afetuoso e a via no dia seguinte. Conversavam sobre a vida, sobre o calor, sobre o céu.

Voltando para casa naquele dia, conversando com Vítor, parou de repente. Na rua havia um rato morto, esmagado, aderido ao asfalto.

Ela via como suas patas eram pequenas. Seus dentes à mostra. Os buracos onde antes haviam olhos. E achava aquilo fascinante.

No prédio ao lado, Lucas olhava pela janela. Viu a garota ali, parada, olhando para um rato morto na rua. Ela encarava o bicho de modo a analisar a vida ali extinta. Ele não soube porquê, mas sorriu.

A vida é como mágica. Vejo meus dedos movendo e é tão bonito. Há tanta beleza. Todas essas coisas ao nosso redor e as pessoas nem se incomodam de notar. É louco como tudo funciona. Máquinas, árvores, ratos. E pessoas. Cérebro, sangue, pensamentos, tudo isso aprisionado em um corpo. Como podemos sequer existir? A física é mágica. O universo, o cosmo, é mágico. Existência na bagunça do universo. O bóson de Higgs. Coisas. E fico hipnotizada, às vezes. Meu irmão dormindo e ele está sonhando, ele é outra pessoa, exatamente na frente dos meus olhos. Como podem as pessoas existirem? Essa energia fluindo pelo universo. E a morte. Às vezes penso sobre a morte. E é estranho. A vida indo embora. O corpo comido por vermes, ou queimado, ou esmagado no asfalto, vazio. O fim. Me pego imaginando um mundo em que não existo. É uma puta loucura a ideia de que um dia estarei morta. Ideia bem, bem abstrata. Mas vai acontecer. O fim. E o mundo vai continuar girando sem mim, como se nada tivesse acontecido. E isso também é bonito, ao seu modo. A mágica não irá acabar. A energia que está pouco se fodendo para qualquer coisa, e somos só uma coisa ambulante que aconteceu. É bonito por sua existência, sua existência sem sentido. E só podemos ser felizes por sermos pessoas. Por ter coração e unhas. Pó cósmico, é isso que somos. Nada além de pó cósmico combinado. E isso é tão, tão bonito. Como pode a vida existir? 


Ela desce do ônibus e cumprimenta Vítor. Outro dia. Conversam sobre sustentabilidade. Vítor diz que não devemos nos importar se o planeta vai acabar, porque ele não vai. A Terra vai saber se adaptar, como se adaptou antes. O problema, ele diz, é para as pessoas. Elas vão morrer. Ninguém vai fazer nada e o planeta saberá se livrar das pessoas.

A garota fica chateada, mas concorda.

Ela diz fazer xixi no banho e Vítor ri.

Na janela daquele prédio verde, Lucas sempre está olhando para a calçada, nesse horário. Adora observar a garota. Ela hoje está de rabo de cavalo e ele fita sua nuca.

Não pode ver dali, mas gosta de pensar que na sua nuca existem cabelos curtinhos e dourados, como uma penugem. Ela poderia ser uma ave, por ficar assim, andando leve e conversando sozinha, como todos os dias da semana.

Esse hábito de Lucas não é entendido por sua mãe, que fica irritada por vê-lo demorar ao sentar-se para almoçar.

Assim se passaram algumas semanas. Ela indo para casa, e Lucas a observando na sua solidão, ela conversando com o ar e se divertindo com isso.

Naquela terça-feira, estava chovendo. A garota desceu do ônibus e riu ao ver Vítor, molhado, a esperando como de hábito. Ela pulava as poças que eventualmente apareciam na sua frente.

- Sempre te achei tão espontânea. Livre. Eu gosto disso - Vítor disse a ela, e, na sua felicidade contida, corou.

Lucas pensava o mesmo, da janela.

Via a garota molhada, com o uniforme colado ao corpo, os cabelos colados à pele. Lembrava de seu sutiã revelado pela água ao tomar banho. Sua mãe gritava por sua demora no banheiro, um banho mais longo que o natural, e o chuveiro abafava o som de seus baixos gemidos.

Hoje me chamaram de espontânea. Fico muito feliz de ouvir isso. Espírito livre, bom humor, inteligência. Espero ser assim e tento ser assim. O que decidimos ser é algo importante. Escolhas fazem de nós o que somos. Estão longe de definir alguém, algo que acredito ser impossível, pelo menos por completo. Talvez muitos achem que sou maluca. Na verdade, sei que muitos acham. E eu gosto disso. Somos todos loucos, afinal de contas, mas ao menos não tenho medo de ser maluca. Gosto de pessoas loucas, para mim isso é uma qualidade, quase obrigatória. E a espontaneidade é ligada a ser maluca.


No dia seguinte, chovia de forma fraca, os pingos acariciando peles e as folhas das árvores. Lucas, pela janela, esperava a garota. Ela estava dez minutos atrasada.

Não era algo para se preocupar, ele sabia. Mas não parava de pensar que poderia ter acontecido algo. Imaginou a garota morta, esmagada no asfalto como o rato que os unira.

Deve ter ficado gripada da chuva que pegou ontem, repetia para si.

Até que não aguentou. Ignorou a mãe lhe chamando e desceu para a calçada do seu prédio, para esperá-la, para vê-la.

E a viu, há três quarteirões, descendo de um ônibus.

Estava chovendo, mas via que ela estava chorando. Seu peito deu um nó.

Ela se aproximava e ele não conseguia sair do lugar, da chuva. Não conseguia acreditar estar no mesmo nível dela, por estar geralmente a dois andares dela. Um sorriso tentava se manifestar, e ele tentava domar a si mesmo.

Então a garota o viu. Encarou Lucas como se visse sua alma que agora estava molhada, não tanto quanto a dela.

Ela olhou para o lado e pareceu brevemente surpresa, como se um amigo imaginário pudesse ter desaparecido misteriosamente. Lucas se divertiu com essa ideia por um segundo ou dois.

Depois, foi ao seu encontro, com o coração subindo pela garganta.

- Está tudo bem?
- Não acredito que estou chorando na frente de um desconhecido. Não faço isso geralmente, acredite em mim.

A sua voz, apesar de levemente anasalada pelo choro discreto, deu-lhe arrepios. Ele pediu para ela esperar um pouco e foi até a portaria do seu prédio, pediu um papel toalha, e voltou a ela.

A garota só riu quando ele lhe entregou um papel toalha completamente encharcado, e gostou de ver a confusão simpática do rosto do garoto.

Vítor nunca mais apareceu. Mas não faz mal. Sempre vejo o garoto do prédio verde na janela do segundo andar, e sorrio e aceno para ele quando passo. Se ele estivesse no ônibus, e eu jogasse o meu passatempo de escolher um cara de lá, eu o escolheria sem sombra de dúvida, alegre, até.

1.7.12

multiverso.

- Quem é você? E onde eu estou?
- Sonhando. Sente-se.
- Não sabemos quando estamos sonhando.
- Existe algo chamado sonho lúcido, a consciência de se estar adormecido. Os sonhos são entidades vivas e independentes. Não vá, espere um minuto.
- A porta está trancada? Pode abrir agora, seu filho da puta, ou ligo para a polícia. Onde está meu celular?
- Não sei, o sonho é seu. Acalme-se, não há sentido em quebrar as coisas. Não são minhas, de qualquer modo. Esse vaso não me afeta.
- Prove que estou sonhando.
- Ah, você sabe que está, no fundo.
- Que barulho foi esse? Acho que ouvi alguma coisa, nesse quarto, o que foi isso?
- Talvez seja o colapso de um novo universo nascendo.
- Que porra é essa que você está falando?
- O multiverso. Realidades diferentes da que vemos, há um universo na cabeça de cada um, dançando entre os neurônios. O mistério envolto na mente humana? Temos uma capacidade única de criar universos. Um universo com nossas próprias leis. E temos janelas para espiarmos: os sonhos. Quando morremos, eles conquistam liberdade e eclodem em outro lugar. Talvez tenha sido isso.
- Você é louco.
- Fui criado por você. Você é louco. E, por ser louco, me chama de louco. Você está se projetando.
- Você está sugerindo outros universos no cérebro de alguém. E me trancou aqui para ouvir suas teorias. Acho que você precisa bem mais de um psiquiatra.
- Deve ser duro, para você, descobrir isso. Saber ser produto da mente de alguém, de outra realidade, que morreu e, assim, deixou um universo independente, também deve ser perturbador. Mas é a verdade, sua mente é autônoma. Existe aí um universo adormecido, acordado enquanto você dorme. Dando traços de sua existência ao fantasiarmos de olhos abertos e nas histórias que criamos, como um Harry Potter voando por aí, um dia. A religião ainda não capturou que o nosso maior mistério somos nós mesmos.
- Minhas fantasias são realidade, você disse?
- Naquele dia em você bateu para a Scarlett Johansson ao tomar banho, bem, é algo com contornos de um universo só seu. Na sua mente. Particularmente ligado ao seu id.
- Legal.
- Não notamos a beleza dentro de nós. A vida, e a vida que explode em um novo universo ao morrermos, é surreal. O desconhecido é fascinante. Cada sonho, um mundo diferente, tomando vida própria. Cada pesadelo, a agonia do peso da nossa inventividade, a fábrica de universos dentro da nossa massa cinzenta - que na verdade é rosada. Uma ironia, de fato.
- O que está acontecendo com meus universos cerebrais, agora?
- Quando disse estarem eles adormecidos, significa que estão em outro espaço-tempo, mas atados a você. As personagens de lá seguem seus rumos. E, assim como sua ex vive em outra realidade, não só nas que você criou, você também tem um reflexo em outros. Tendo uma vida diferente. Somos multifacetados, e somos muitos no multiverso.
- As coisas estão coloridas e girando. Cara, você parece estranho. Eu me sinto estranho. Dentro de um caleidoscópio, com Lucy esperando por mim no céu.
- Outro universo, outras regras. A física é outra. Só livre quando você morrer.
- E quando vai ser isso?

Casos de suicídio em série têm um fim
Nessa sexta-feira, um caso peculiar foi resolvido. Um homem, por volta dos 30 anos, sem identidade reconhecida, levava pessoas sem padrão determinado a lugares diversos, como quartos de hotel à beira de estrada, após um coquetel de inúmeras drogas - como, por exemplo, LSD. O homem não matava as vítimas: ele, de alguma forma, induzia-as ao suicídio, talvez facilitado pelos alucinógenos tomados pelos escolhidos por ele.
Sua 42ª e última vítima, de 24 anos, morador do bairro Meireles, aqui em anônimo por vontade da família, foi encontrada enforcada por um cinto em um hotel. Havia escrito na parede, com seu sangue e sua caligrafia, a frase "que eclodam meus universos".
O criminoso, ao ser pego pela polícia, ateou fogo a si mesmo, queimando consigo a viatura que o levava e tirando a própria vida. Não houve feridos.

26.4.12

aquiles.

Ela tinha os calcanhares azuis.

Não tinha exatamente orgulho dos seus calcanhares, mas não escondia de si o azulado encardido, tinha consciência de ser assim e estava confortável com isso.

Uma amiga sua tinha lóbulos vermelhos, flamejantes. Escondia-os com o cabelo, em um penteado que deixava brechas para suas orelhas em chamas. Enlouquecia. Aflita, pensou em arrancar a orelha, ser Van Gogh. Mas não conseguia, e se escondia.

A de calcanhares azulados aceitava seus pés de nuvem.

Uma vez usou sandálias para um encontro com seus amigos, que olharam escandalizados. Enconda isso, disseram. Como você pode ter uma mancha colorida na pele?, uma de mindinho laranja questionou. Cegos das suas cores. Daltônicos para a humanidade.

E se viam algo estranho, um verde musgo nas costas das mãos, um lilás nas coxas, tratavam de esquecer. Passavam maquiagem, e resolvido. Até a hora do banho, ao menos.

Cabeça aberta e calcanhares à mostra, causava rebelião mental nos outros maquiados. E dessa forma incomodava, porque lembrava o arco-íris dentro de cada um. Ninguém escapa daquela aquarela que pinta as pessoas.

Não tinha medo das safiras aos seus pés. Notou que elas aos poucos desapareciam, restando só uma cicatriz do que tinham sido.

Algum dia perceberia o novo anil às suas costas. E estaria pronta para usar frente-única, não negar a cor que fazia deles humanos, a cor repudiada e cheia de camadas de pó compacto.

6.4.12

devaneios.

Será que um dia fomos todos um só? O universo inteiro em um ponto que explodiu?

Nas minhas veias corre o sangue de uma estrela?

E a vastidão do espaço.

Acho assustador de alguma forma, porque assim notamos como somos insignificantes. Somos tão pequenos, tão pequenos. Sentir isso nos diminui ainda mais. Mas fascina ao mesmo tempo.

Que nem a vida.

Será a vida produto do acaso?

Não acredito em Deus. Não acredito em um ser bondoso maior que tudo que conhecemos, manipulando tudo. Mas acho que acredito em uma força, uma energia, fazendo as coisas acontecerem.

Destino?

Não sei.

E, apesar de frustrante, essa é a beleza. Nunca vamos saber. Viajar anos-luz, salvar o mundo, ir ao infinito. Mas sempre existirão perguntas sem respostas. Sempre. O mistério nos mantém, dá a mente teorias infinitas. Eternas.

Aquela hora que a mente divaga é a hora em que tudo é verdade. Quando você sabe as mais loucas teorias, quando você engatilha mais respostas para mais perguntas e mais perguntas para ter ou não respostas.

Mas somos tão pequenos.

Somos tão grandes para as formigas. O que é o mistério para elas?

E um universo dentro de outro? Achar um planeta dentro do núcleo de um átomo? Descobrir estarmos nós em um átomo de um outro universo?

Tudo acaba?

Vamos todos ser comidos pela terra. Virar um dia outra coisa. Ser comido por uma zebra. Ser reciclado.

A única coisa para perdurar são as impressões. São suficientes para um retrato de nós mesmos? Vamos amarelar e ser esquecidos.

Mas, por enquanto, vivo.

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esse texto não foi escrito originalmente para ser publicado. é meio que pessoal. mas estava na hora de postar alguma coisa por aqui.