19.7.12

três quarteirões.

Ela voltava do colégio de ônibus. Não se importava, na verdade. A garota até gostava disso, de analisar as pessoas do ônibus em silêncio, imaginando como era estranho pensar que cada um ali tem sua própria vida, seus próprios sonhos e pensamentos.

Tinha também um jogo, quando o ônibus estava mais vazio. Se imaginava na escolha, uma escolha sem chance de não ser feita, a de quais caras de lá ela poderia ter sexo no caso de uma catástrofe mundial em que os sobreviventes seriam as pessoas daquele exato ônibus.

Descia na sua parada sozinha. Sempre dizia um obrigada ao motorista.

Na sua parada, Vítor a esperava. E ele caminhava os três quarteirões dali a casa dela, dava um adeus afetuoso e a via no dia seguinte. Conversavam sobre a vida, sobre o calor, sobre o céu.

Voltando para casa naquele dia, conversando com Vítor, parou de repente. Na rua havia um rato morto, esmagado, aderido ao asfalto.

Ela via como suas patas eram pequenas. Seus dentes à mostra. Os buracos onde antes haviam olhos. E achava aquilo fascinante.

No prédio ao lado, Lucas olhava pela janela. Viu a garota ali, parada, olhando para um rato morto na rua. Ela encarava o bicho de modo a analisar a vida ali extinta. Ele não soube porquê, mas sorriu.

A vida é como mágica. Vejo meus dedos movendo e é tão bonito. Há tanta beleza. Todas essas coisas ao nosso redor e as pessoas nem se incomodam de notar. É louco como tudo funciona. Máquinas, árvores, ratos. E pessoas. Cérebro, sangue, pensamentos, tudo isso aprisionado em um corpo. Como podemos sequer existir? A física é mágica. O universo, o cosmo, é mágico. Existência na bagunça do universo. O bóson de Higgs. Coisas. E fico hipnotizada, às vezes. Meu irmão dormindo e ele está sonhando, ele é outra pessoa, exatamente na frente dos meus olhos. Como podem as pessoas existirem? Essa energia fluindo pelo universo. E a morte. Às vezes penso sobre a morte. E é estranho. A vida indo embora. O corpo comido por vermes, ou queimado, ou esmagado no asfalto, vazio. O fim. Me pego imaginando um mundo em que não existo. É uma puta loucura a ideia de que um dia estarei morta. Ideia bem, bem abstrata. Mas vai acontecer. O fim. E o mundo vai continuar girando sem mim, como se nada tivesse acontecido. E isso também é bonito, ao seu modo. A mágica não irá acabar. A energia que está pouco se fodendo para qualquer coisa, e somos só uma coisa ambulante que aconteceu. É bonito por sua existência, sua existência sem sentido. E só podemos ser felizes por sermos pessoas. Por ter coração e unhas. Pó cósmico, é isso que somos. Nada além de pó cósmico combinado. E isso é tão, tão bonito. Como pode a vida existir? 


Ela desce do ônibus e cumprimenta Vítor. Outro dia. Conversam sobre sustentabilidade. Vítor diz que não devemos nos importar se o planeta vai acabar, porque ele não vai. A Terra vai saber se adaptar, como se adaptou antes. O problema, ele diz, é para as pessoas. Elas vão morrer. Ninguém vai fazer nada e o planeta saberá se livrar das pessoas.

A garota fica chateada, mas concorda.

Ela diz fazer xixi no banho e Vítor ri.

Na janela daquele prédio verde, Lucas sempre está olhando para a calçada, nesse horário. Adora observar a garota. Ela hoje está de rabo de cavalo e ele fita sua nuca.

Não pode ver dali, mas gosta de pensar que na sua nuca existem cabelos curtinhos e dourados, como uma penugem. Ela poderia ser uma ave, por ficar assim, andando leve e conversando sozinha, como todos os dias da semana.

Esse hábito de Lucas não é entendido por sua mãe, que fica irritada por vê-lo demorar ao sentar-se para almoçar.

Assim se passaram algumas semanas. Ela indo para casa, e Lucas a observando na sua solidão, ela conversando com o ar e se divertindo com isso.

Naquela terça-feira, estava chovendo. A garota desceu do ônibus e riu ao ver Vítor, molhado, a esperando como de hábito. Ela pulava as poças que eventualmente apareciam na sua frente.

- Sempre te achei tão espontânea. Livre. Eu gosto disso - Vítor disse a ela, e, na sua felicidade contida, corou.

Lucas pensava o mesmo, da janela.

Via a garota molhada, com o uniforme colado ao corpo, os cabelos colados à pele. Lembrava de seu sutiã revelado pela água ao tomar banho. Sua mãe gritava por sua demora no banheiro, um banho mais longo que o natural, e o chuveiro abafava o som de seus baixos gemidos.

Hoje me chamaram de espontânea. Fico muito feliz de ouvir isso. Espírito livre, bom humor, inteligência. Espero ser assim e tento ser assim. O que decidimos ser é algo importante. Escolhas fazem de nós o que somos. Estão longe de definir alguém, algo que acredito ser impossível, pelo menos por completo. Talvez muitos achem que sou maluca. Na verdade, sei que muitos acham. E eu gosto disso. Somos todos loucos, afinal de contas, mas ao menos não tenho medo de ser maluca. Gosto de pessoas loucas, para mim isso é uma qualidade, quase obrigatória. E a espontaneidade é ligada a ser maluca.


No dia seguinte, chovia de forma fraca, os pingos acariciando peles e as folhas das árvores. Lucas, pela janela, esperava a garota. Ela estava dez minutos atrasada.

Não era algo para se preocupar, ele sabia. Mas não parava de pensar que poderia ter acontecido algo. Imaginou a garota morta, esmagada no asfalto como o rato que os unira.

Deve ter ficado gripada da chuva que pegou ontem, repetia para si.

Até que não aguentou. Ignorou a mãe lhe chamando e desceu para a calçada do seu prédio, para esperá-la, para vê-la.

E a viu, há três quarteirões, descendo de um ônibus.

Estava chovendo, mas via que ela estava chorando. Seu peito deu um nó.

Ela se aproximava e ele não conseguia sair do lugar, da chuva. Não conseguia acreditar estar no mesmo nível dela, por estar geralmente a dois andares dela. Um sorriso tentava se manifestar, e ele tentava domar a si mesmo.

Então a garota o viu. Encarou Lucas como se visse sua alma que agora estava molhada, não tanto quanto a dela.

Ela olhou para o lado e pareceu brevemente surpresa, como se um amigo imaginário pudesse ter desaparecido misteriosamente. Lucas se divertiu com essa ideia por um segundo ou dois.

Depois, foi ao seu encontro, com o coração subindo pela garganta.

- Está tudo bem?
- Não acredito que estou chorando na frente de um desconhecido. Não faço isso geralmente, acredite em mim.

A sua voz, apesar de levemente anasalada pelo choro discreto, deu-lhe arrepios. Ele pediu para ela esperar um pouco e foi até a portaria do seu prédio, pediu um papel toalha, e voltou a ela.

A garota só riu quando ele lhe entregou um papel toalha completamente encharcado, e gostou de ver a confusão simpática do rosto do garoto.

Vítor nunca mais apareceu. Mas não faz mal. Sempre vejo o garoto do prédio verde na janela do segundo andar, e sorrio e aceno para ele quando passo. Se ele estivesse no ônibus, e eu jogasse o meu passatempo de escolher um cara de lá, eu o escolheria sem sombra de dúvida, alegre, até.

3 comentários:

  1. Falta só transformar em um curta-metragem

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  2. Talvez19.7.12

    Parabéns pelo seu conto, é o primeiro que leio, mas realmente gostei muito mesmo. Espero ler muito mais desses. (Não sei se foi só impressão mais essa "ELA" parece revelar você mesma... gostei disso). Foi um grande prazer...

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  3. Agora sim a opinião "verdadeira": Não posso dizer que foi o texto que mais gostei, pois me pareceu muito semelhante aos últimos. Entretanto, tenho de admitir uma coisa: adoro tua espontaneidade ao escrever e como manifesta isso nas cenas e palavras que utiliza.

    E... "Ela via como suas patas eram pequenas. Seus dentes à mostra. Os buracos onde antes haviam olhos. E achava aquilo fascinante." Beleza Americana?

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